Uma dor borbulha o íntimo, formando ondas e neblinas que saltam como pedras, abrindo-se arestas nas florestas desconhecidas da menina perdida em tempos que já vão. Trilhas se abrem pelos caminhos, entre espinhos e desatinos. Em meio ao risco e o escapismo, ela mergulha em águas turvas que a puxam para a zona obscura de uma angústia múltipla que lhe adentrou para além da vulva. Mas quem lhe adentrou? Quem a penetrou?! Não se sabe... Não há uma fotografia, nem tampouco uma cotovia a salvar seu amanhã. Assim, ela se enfia em si mesmo, numa captura do eu, que ainda nem morreu, mas se encontra em rupturas abruptas, em um percurso líquido, tísico. Talvez, seja necessário se liquefazer...
Kátia Surreal (@katiasurreal_) é carioca, vive em Niterói (RJ), nascida em 13/7/1986, professora de língua portuguesa, formada em Letras (UFRJ, UFF e Uerj), militante da CMI, autora do livro Gradações hiperbólicas (2021) e do blog Fugere ad Fictem. Tem participado de diversos coletivos de escritas, recebeu o Prêmio Conceição Evaristo de Literatura da Mulher Negra (2022) e ocupa a cadeira 155: Surrealidade, da Academia Independente de Letras (AIL).
era uma vez
sinto-me fragmentar
dia a dia
piso sobre cacos
e continuo
a pisar e a pisar
derramando sangue
dum tempo distante
que se funde com o agora
algo me dilacera
tornando-me fera
perdida na selva
entre lembranças e lapsos
onde me indago
em descompasso
imagens vagas, entrecortadas
um forte sentimento de mágoa
de tempos que já lá vão
tempo longe, muito longe
súbito, vem-me à memória
trajetória que não bem sei
parece até que nem vivi
mas persistem em mim
é um sei lá que não sei cá
nada seca a lágrima
que se desmorona
ao passo que me orienta
a procurar a dor
que se infiltrou
abuso...
abuso duma lembrança líquida
abusiva
rompida em fragmentos
coagulando-se
no rio de sangue
que brota dum reino distante
e morre e nasce
bem aqui
dentro de
mim
*
silêncio sexual
falo
na boca
o silêncio...
Tanatos
morte-vida
introduzida
na coisa em si
e em ti me acabo
como num estalo...