Boa chuva é meu primeiro livro lançado via editora, representando uma importância diferente na minha trajetória artística. É um livro de poemas no seu campo expandido, em cruzo com as visualidades, uma característica da minha poética. Os poemas foram tecidos junto do meu universo de experiências afetivas, espirituais, filosóficas e políticas, que atravessa uma trajetória de vida marcada pelas sabedorias da terra, atravessa o que hoje é meu campo de pesquisa e o fato de eu ser yawô - iniciada nos cosmossentidos do Candomblé.
O livro se compõe de quatro partes: nascente, pororoca, lamaçal e cabaça. Narra o trânsito simbólico das tessituras da minha vida, desde as águas doces da mata úmida interiorana de Conceição do Formoso – nascente que me pariu -,à pororoca como um movimento do encontro subjetivo entre rio e mar. O lamaçal sendo um portal ancestral para onde o mar me trouxe e a cabaça como um retorno ao útero-terra, tronco ancestral que me fez brotar existência poética.
Esse é um livro-água, que celebra minhas avós, minha mãe e minhas irmãs, que celebra a vodun Nanã como ventre primeiro, que celebra as continuidades ânimas e o que há de comum habitando nosso sensível - as correntezas que lavam e banham nossas histórias e memórias.
Sou artista visual, poeta e pesquisadora antimanicomial. Nasci sob a constelação de peixes, no povoado de Conceição do Formoso - Zona da Mata de Minas Gerais e me radiquei em Salvador - Bahia, onde ampliei minha geografia íntima e vegetação interna. Sou iniciada no Jeje Savalu, filha de Nanã e Oxóssi. Me graduei em Artes Plásticas pela Escola Guignard (UEMG), mestra em Linguagens pelo PPGEL (UNEB) e doutoranda em Literatura e Cultura pelo PPGLitCult (UFBA). Desde 2008 atuo nos cruzos entre poesia e pintura, palavra e visualidades, com exposições individuais e coletivas. Sou autora dos livros “Semear”, “Tratado da Gravura”, “Uma primavera” e “O boi abatido” - os dois últimos assinados por meu heterônimo Manuel Lua-Cheia. Lancei ainda 6 publicações de poesia de forma independente: “Terra”, “Pinturas”, “Estrada sou eu”, “Vertigem-Linguagem”, “É o mar” e “A Bahia é um lugar dentro de mim”. Participei das antologias “Ser mulher arte” (2020) e “Mulheres das águas” (2021). Em 2022 fui contemplada pela 4ª Edição do Programa de Bolsas Artísticas da Incubadora DAO, para escritores. Minha poética se compõe de elementos, gestos, narrativas e cosmossentidos ancestrais, próprios dos saberes que construíram/constróem minha trajetória e subjetividade, e que entendo como um campo político imagético que atua nas agências de vidas.
Eu poderia começar escrevendo que o trabalho de Ana Pedrosa é forjado na leveza. Ainda que a impressão primeira seja essa, a produção da artista, porém, é uma experiência pesada.
Não o peso relativo ao fardo, à sobra ou ao exagero. Mas o peso de mil eras de sabedoria predecessora que calhou de assentar nos gestos e na palavra desta profusa poetisa, pesquisadora e artista plástica - para estacionar em apenas três dos ofícios de sua farta coleção.
Assim, sendo Ana (ela própria, mas, sobretudo, seu trabalho de griot) uma síntese moderna e producente que mixa em medidas equivalentes as heranças e o presente, não seria deslumbre ou vão encantamento tomar seu trabalho como um farol bussolar, um retrato dinâmico e vivo do nosso tempo, uma flecha de ponta encarnada que rasga o vento na direção do espírito.
Os escritos de Ana são como conselhos. Não aqueles que alertam ou educam com candura. Embora musicais e elegantes como o calor ameno do começo da manhã, seus poemas são mesmo sol a pino. Luz intensa que ferve as sinapses e as retinas de quem enxerga através dos óculos da ancestralidade.
Certeira como a seta de Oxóssi e cálida como a sabença de Nanã, a poesia de Ana é esse pirão grosso e nutritivo de encantamento e axioma. Sua palavra é semente do mais frondoso baobá. Que rompe o chão e os elementos pra frutificar na eternidade.
— Rafael Vilanova . Músico, compositor e pesquisador.
OMÍ *
meu peito é um cacto arriscoso
sobrevive espinho
se guarda curativa água
silencia
* omí: água nas línguas convencionadas no brasil como famílias yorubá e fon (utilizo as palavras dessas famílias linguísticas ao longo do livro, adaptadas ao locus gráficos-orais brasileiros)
MUNGUZÁ
milho branco de molho
1 dia
lavo
escorro
água
fogo
cozimento
coco quebrado
batido
leite
cravo
canela
doce
fervo
najé
suspendo
hálito
ofó *
mãos abertas
olhos fechados
digo o seu nome
salubá **
broto {como grão}
canto
reverencio
adubar ***
significo -
alimento pra cabeça
é texto
* ofó: hálito, adaptado do vocabulário yorubá e fon.
** salubá: saudação à vodun nanã.
*** adubar: ato de curvar-se até o chão saudando ao mais velho, àquele que se respeita.