In.cor.rentes é um livro que trata de tudo o que nos faz por dentro (“in”), de tudo o que os outros impõem sobre cada um de nós (“cor”), de tudo o que nos une ao mesmo tempo que separa (“correntes”) e de tudo o que quase nos toca, pois passa “rente”. O livro é social, mas não se esquece de que há que endurecer, mas sem perder a ternura. In.cor.rentes não fala de sujeitos sem cor que, por isso mesmo, quase sempre foram vistos como brancos e brancas. In.cor.rentes fala de pessoas que trazem na pele memórias das marcas de um tempo dolorido, por isso a morte ronda os versos e não deixa tempo para recreações exageradas.Com este livro, Valmir Luis Saldanha nos obriga a exugar as lágrimas com uma mão, enquanto com a outra pede que reescrevamos a história.
Valmir Luis Saldanha é radicado em Itatinga-SP, professor efetivo de português e comunicação no IFSP, mestre e doutorando em Estudos Literários pela Unesp-Araraquara, e autor de materiais didáticos para diversas instituições de ensino. Participa ativamente do GEAL, Grupo de Pesquisa em Antropologia Literária, da UFPB, e do LLE, Grupo de Pesquisa Língua, Literatura e Educação, do IFSP. Com In.cor.rentes ele estreia oficialmente como poeta, após ter publicado para amigos o livreto Sala de (mal) estar em 2014.
TRÊS DIAS DE NOVEMBRO (Trecho)
Meus olhos se abriram, mas quando o olho abre não quer dizer que a gente esteja enxergando
E eu nem sei se esse homem espancado e morto tinha ido comprar filtro solar, se ele precisava se esclarecer, ou se ele precisava de mais proteção
E nem sei quem era ele
Talvez ele não fosse alguém, talvez ele fosse você, mas você não se deixa morrer tão facilmente, tão inutilmente, só por existir
Mas a gente nunca sabe mesmo quando uma outra pessoa vai se transformar na gente, e eu me vi ali, e eu vi que o último dia de alguém é tão natural quanto o primeiro, só que se o último dia de alguém é o último dia de uma multidão, então a gente fica sabendo que é só nesse último dia que a eternidade toma forma
E para sempre eu morri espancado e uma apresentadora contou para todo mundo que isso tinha acontecido
E a partir de agora eu só sentia meu coração batendo fora do peito
*
MEMÓRIA
Amar o perdido no passado negro
não me deixa escrever sobre o negro passado de mão em mão
que me forjou como brasileiro
só que não inteiro
pois que a palavra que não me falava do sentido e do passado
também não me permitia atualizar meu sobrenome
transformado em negro-cabinda negro-rebelde negro-fujão
e me inutilizava como homem negro
por não ter ficado qualquer resquício do vivido no porão
pois que o passado passado
ficou obscurecido sim
vivido sim
mas passado apagado que pago em mim
e sofro
por não tê-lo na memória.