Poemas riscados na profundidade do eu é uma obra que procura pensar através da poesia, nas dores que são sentidas com a vida. E o que só na poética se permite dizer. A autora pensa sobre um corpo/identidade que é vivo na sociedade sem a possibilidade de sentir e ser. Onde o encontro é o prelúdio da partida, onde os amores são rasgados e costurados em tentativa de se viver. Cayle organia as poesias pensando na retomada dessas dores, no calor que carrega os amores que quando esfriam ensinam que é preciso se reconhecer. É a poesia como ponto de partida: reconhecer-se e ser acolhida diante dos fragmentos. Das lembranças, vozes e sentimentos que corpos transgressores como o seu não puderam nunca se ver. Diante da fragilidade, da saudade e a vontade de se fortalecer.
Cayle Angeline é uma travesti negra poeta, ilustradora e escultora da região do Cariri. Nascida no Crato nos sopés da chapada do Araripe foi criada na beira do rio, ligação que guarda até hoje em seu coração correnteza. É graduanda em História na Universidade Regional do Cariri - URCA e ativista pelos direitos e liberdade religiosa dos povos de terreiro.
“Fio de corte”
Há noites em que eu mato a mim mesma
Ponho as garras para fora
Revelo-me tigresa
Mas carrego uma curiosa tristeza
De conhecer o mundo aqui fora
Recrio-me diante das profundezas
Tenho nos pés a firmeza
De empunhar
E rasgar uma história
Mato-me para renascer
Para me ver novamente conhecer
Observo a vida como memória
Atravesso o vazio da certeza
O que me faz ver
Eu sou dezenas de mim mesma
Sou o firmamento em meio às horas
(Trans)mutação
É sobre o pensar não ser suficiente
Nos corpos das minhas
Sempre sob o estatuto de coisificação
Não encontrar braços que lhe abarquem
E a vida já tem tanto não...
Não há por que mentir para um peito que sente
Por não saber a sua devida imensidão
Que se arrisca nas vielas
Que está longe do teu padrão
Que dá vida sempre espera
O flagelo sobre os corpos das minhas
Que sempre ouviu um não
"Não... Você deve andar na linha"
Mas eu não tenho nem meu chão
Nunca houve saída
Sob meu corpo uma excitação
Mais uma foda
Que esperei a partida
Quando lhe dei meu coração
Matei a mim mesma na ida
O peito em brasa
A cabeça que rima
Felizmente renascerei como poesia
Suficientemente minha
Mas livre para qualquer imensidão
INFORMAÇÕES COMPLEMENTARES
Coleção Machado Preto - Livro #6
38 p.; 13 X 16 cm
ISBN 978-65-85955-06-5