Desenhava com uma caneta nankin no meu antigo quarto do apartamento onde meus pais não moram mais. Esqueci a caneta por um descuido e, quando voltei, a tinta havia secado. Em um impulso, a sacudi violentamente no ar e o nankin escorregou atingindo o que fosse. Respingos por toda a parte. Reparo na parede branco-encardida que agora ganhou manchas pretas: o que vejo é inefável. Como perpetuar o caráter inefável das coisas, se a própria inefabilidade é indescritível? Um desafio paradoxal, mas uma tarefa indeclinável fazer perdurar o deleite. Este livro é um conjunto de desenhos feitos com as palavras, uma tentativa de dimensionar o que está além delas: um exercício de criação pela via do poema.
Inefáveis é dividido em três partes, cujos títulos são inspirados por excertos de escritoras brasileiras que são referências para minha poética. “INCORPÓREO É O DESEJO” é o último verso do livro Do desejo (1992), de Hilda Hilst, e o verso de abertura da primeira parte deste livro. Em letras capitulares, o verso original parece tentar dar corpo ao que não possui. O desejo, ainda que incorpóreo, acende os corpos, move afetos, inventa paixões e alimenta amores. São essas todas temáticas trabalhadas poeticamente aqui, passando por experimentações em outros idiomas e pela inspiração de canções, constituindo uma ode ao prazer e à dor do amor e do erotismo.
A frase que nomeia a segunda parte, “Meu tema é o instante?”, é emprestada do início de Água viva (1973), de Clarice Lispector, que acompanha minha escrita tanto quanto os temas marítimos. A narradora inaugura um questionamento sobre o tempo e sobre a existência e, concebendo o instante como “tema de vida”, procura nele a inspiração para a criação da escrita. Neste capítulo, me encarreguei da observação do mundo para materializar em palavras e alguns desenhos automáticos momentos aparentemente irrelevantes, mas entranhados de poesia. Por acreditar que um dos papéis do poeta é revelar obviedades que nem sempre são vistas, busco tensionar a natureza das coisas ao escrever sobre elas.
O livro termina na parte III com um manuscrito de Mana Bernardes, intitulado vidAMORte. Para ela, entre vida e morte, existe a palavra amor. A partir dessa reflexão, mergulhei em minha relação com a morte e na perda da minha avó paterna, Maria Laura, para encontrar as pulsões que me mantêm viva. Homenageio meus laços de sangue ao me inclinar sobre minha história como forma de perpetuar a memória de quem me trouxe até aqui. Encontro no ofício inevitável da escrita as estratégias de sobrevivência necessárias ao enfrentamento e convívio diário com temas como o transtorno de ansiedade generalizada, a depressão, o machismo e o assédio às mulheres. Ensaio modos de entender a singularidade das formas de luto e produzir esperança.
Inefáveis são poemas para as pequenas-médias-grandes imensuráveis êxtases e tragédias da vida ou para inventar futuros nos dias em que quase nada acontece. Neste livro, ofereço uma dose de delírios e veraneios em uma viagem de contemplação por paisagens marítimas e de vislumbres da infância na serra, passando por histórias de amor, reflexões sobre o ofício artístico-poético e o luto.
Mylena Godinho de Freitas nasceu em 1998 em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, e vive em Niterói desde 2017. É concluinte no bacharelado em História da Arte pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ) e trabalha desde 2019 com educação em museus. Como artista multidisciplinar, integrou exposições em instituições como Parque Lage, Espaço Travessia e Galeria Eixo Arte. Pesquisa a produção artística de mulheres brasileiras e latino-americanas, investigando as relações entre artes visuais, poesia e política. Recebeu o prêmio de melhor pesquisa acadêmica no III PEGA — Encontro de Estudantes de Graduações em Artes do Estado do Rio de Janeiro (2019). Publica regularmente poemas em antologias e revistas literárias, textos críticos em catálogos de exposições de arte, artigos em revistas acadêmicas e pesquisas em sites. Integra a equipe de poetas do portal Fazia Poesia e é profissional de comunicação e social media na TAUP. Inefáveis é seu livro de estreia.
é fogo
estou no fundo
do mar, do poço, da piscina
indecisa
me afoguei no seu olho
afagando
fogo
*
Succession
at thursday
I would like to watch
Succession with you
and dream about
what will succeed
between us
knowing my only richness is
be able to find out
by your side what to do
with our conglomerate of tomorrows
*
sinal fechado
no carro um casal de fumantes
traga cada um o seu cigarro
riem e gesticulam enquanto conversam
não têm pressa para chegar
ao sinal fechado