A obra originalmente foi composta sob a forma de “Hábitos Pandêmicos” com poesias escritas no decorrer da pandemia de COVID-19. A proposta era expressar as nuances, sentimentos intrínsecos e pessoais que um evento dessa dimensão provoca individualmente. Logo, tornou-se imperativo associar a pandemia com as mudanças sociais e políticas que afetaram diretamente a forma como nos relacionamos.
Outro fator de extrema relevância nesse percurso foi minha transição, também impulsionada pelos aprendizados “pandêmicos”. Num mergulho interior que o isolamento provocou. A partir desse momento também mostrou-se necessário unir o âmbito interno ao externo. A “Poética Política” foi inserida no livro como meio de oferecer um complemento a todas essas visões previamente constituídas e mesclar à novas.
O livro é um retrato autobiográfico de um recorte histórico essencial da nossa sociedade. Mais do que isso, é também uma ferramenta de denúncia e aprendizado. Denúncia do genocídio, do descaso, da pobreza e abandono que sofremos durante esses últimos anos. É aprendizado pois a reclusão ensinou a olharmos para dentro, acessar nossas raízes, entender que o coletivo começa no indivíduo.
Quando tinha cinco anos, Maria Vitoria se encantou pela única menina de sua classe. O nome dela era Amanda, a mais alta entre os seis colegas e dona de um cabelo dourado, igual ao de Maria. Vitoria queria ser Amanda, queria ser amada por Amanda, queria ser notada por Amanda. Certo dia, Maria pediu para sua família e escola que a colocassem na turma de balé, ela queria dançar com Amanda, vestir collant rosa e pisar na ponta dos pés. Todos reprovaram seu comportamento, diziam: “balé é coisa de menina e você não é menina”. Como consequência, foi colocada para fazer judô, o que fez muito bem, derrubando machos como se brincasse de boneca. Ali, Maria começava a montar um pequeno caixote de madeira, com tamanho suficiente para protegê-la mas vazado nas laterais para que pudesse ver o mundo.
Aquela caixa simplória de madeira virara um pequeno armário, frágil, porém resistente à luz. Maria se sentia doente por dentro. Ganhando corpo e força imensurável, o lado oculto sorrateiramente raptou a jovem, levando-a para bem fundo daquele armário que parecia modesto por fora, mas um labirinto sombrio por dentro. Lá a deixou trancada, a sete chaves.
A adolescência de Vitoria foi tímida. Cada garota que se relacionava parecia ser um espelho ilusório de quem ela gostaria de ser, um recalque tênue porém vergonhoso, pois beirava a mais sórdida inveja. Maria decidiu investir na dramaturgia, a arte que mais bem representava ela. Inventou, mesclou, imitou personagens masculinos com uma destreza que julgava impossível.
Todas essas fantasias estavam lá dentro do armário, roupas prontas para o uso cotidiano. Agora podia sair e ver o mundo, mesmo que sob o prisma de uma máscara. Quanto mais Vitoria desenvolvia seus personagens, mais sentia o armário sacudir e criar profundezas. Suas personas tinham prazo de validade, como um produto do supermercado. Quando não servia, Maria matava sem dó, literalmente.
E foi assim até seus vinte e um anos, quando se mudou de cidade e pôde recomeçar. Lá encontrou seu primeiro amor, a mulher que ensinaria ela a ser verdadeira. Maria sonhou, e foi num sonho que sua Deusa regente lhe presenteou com um corpo feminino e um vestido branco de seda. À partir dali uma fresta se abria no armário de Maria. O medo se apossou da jovem, como podia um feixe de luz provocar tamanho pavor?
Quando caiu a ficha que Maria era de fato Maria, ela fugiu. Fugiu de seu amor, pois julgava inviável amar a si mesma no estado que se encontrava. Voltou para sua cidade natal, mais perto do conservadorismo que permite a retenção desses comportamentos “anômalos”. Dentro do armário, Maria se maquiava, usava vestidos, raspava as pernas, dançava sensualmente. Fora dele ainda usava barba, a maquiagem do homem.
Havia porém um problema fundamental nessa história. Maria não tinha coragem de sair do armário pra valer. Aquele lugar era sua casa, e como disse antes, sua zona de conforto. Para alguém que se sente uma aberração desencarnada num corpo estranho só há uma saída: eutanásia. A morte dessa vez viria pra valer. Maria colocaria fogo em si e no armário inteiro, para não sobrar nada. Nenhum resquício de sua existência. Assim o fez, numa praia deserta, Maria Vitoria ateou fogo em si e no armário sob um sol que nascia com a exuberância colossal típica de uma estrela. Maria queimava, a pele borbulhava. Ela estava disposta a ir embora junto com aquela caixa de Pandora, para se livrar de uma vez por todas dos sofrimentos que a afligiam.
Num impulso inconsciente, Vitoria venceu a angústia e ainda sob chamas golpeou o armário. Um clarão mais forte que o fogo de seu corpo irrompeu e a cegou instantaneamente. Ela desabou na areia, as ondas do mar logo vieram para apagar as labaredas impregnadas em sua carne e levar o armário destruído até o fundo do Oceano. Maria foi resgatada por uma amiga e levada para o hospital. Dois dias depois, Vitoria voltou para sua consciência, parcialmente cega daquela claridade, mas o pouco que podia ver estava diferente. Apesar de seu corpo ainda ser masculino, não tinha mais máscara. A pele coberta de bolhas era o retrato eterno da luta que travou toda a vida contra um armário. Vitoria chorou, chorou de alegria, a vitória era dela e ninguém poderia mudar isso.
I.
deixar amigos
e entes queridos
olhar para si
não foi o que pedi
mas acho que mereci
a pandemia ensinou a valorizar
coisas grandes e pequenas
dessa vagarosa quarentena
que ilumina o sonhar
às vezes saio
para ver os raios
no horizonte caótico
almejo um despertar simbiótico
subo em minha bicicleta pintada de preta
até dei um nome à ela
gloriosa Bucephala
leio na praça
usando uma máscara
pra ver se afasta
toda e qualquer desgraça