É Tudo Ficção de Flavia Ferrari, para além das muitas possibilidades de leitura, nos coloca em um vivo diálogo com a própria e múltipla realidade onde o fio refratário do bordado é o espaço-tempo-memória. É este diálogo que amplia/recupera o diverso leque das experiências através da arte poética que, sempre a serviço da vida, permite o retorno a si mesmo. A realidade não nos satisfaz, por isso se recorre à arte, a fim de satisfazer o espírito, decifrar e ressignificar as aparências: “É tudo ficção/ (...) O descanso após a conquista/ O bom senso comum/ A interpretação sã da história vivida” (Enxame, p. 11).
E o espaço da dialética entre realidade e arte é a casa, bem aos moldes do pensamento bachelardiano, onde a vida é o maior dos espetáculos, cujos sonhos e devaneios manifestam-se livremente no nosso cantinho do mundo: “A casa tornou-se um espaço vazio/ Terreno submerso” (Casa, p.14), “A casca que protege o abrigo ilusório/ A separação cotidiana da vergonha e da prece” (Paredes, p.16). É neste espaço prenhe de significados que a intuição e o talento da poética de Ferrari inauguram nova forma na imensidão dos sentimentos, cruzando a linha da mera contemplação para desaguar no que diz Henri Bergson: “a alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever”, já que os olhos ávidos de quem lê inserem-se no devir criativo de quem escreve.
É na casa e a partir dela que se estabelecem estreitas relações entre espaço, tempo e memória. O tempo kairós é a agulha não-linear que atravessa o bordado movente da memória e degusta a metáfora do “momento oportuno”, do presente vívido e ideal, a fim de afundar “os olhos muitas vezes pelo mesmo poema” e/ou flertar com “o mesmo livro noites a fio”, deixando “os olhos se fecharem no momento oportuno” (Kairós, p.28). A poética de Ferrari percorre os cômodos internos e externos da casa, revira os guardados do sótão ao porão, desperta devaneios, abre as janelas dos sonhos e coloca a vida em movimento constante, porque viver é desafiar a curva, é entregar-se à Arte para sentir a Vida: “Não há nada certo ou louvável ou elogiável nesta casa/ Que por bem poderia ser demolida” (Sumiço, p.107).
— Marta Cortezão.
Poeta e Articuladora Cultural.
Flavia Ferrari. Poeta e professora da rede pública de São Paulo, Flavia Ferrari lançou, em novembro/2021, o seu primeiro livro de poemas, intitulado “Meio-Fio: Poemas de Passagem”. A obra foi editada pelo Toma Aí Um Poema. Flavia Ferrari escreve desde a adolescência, mas começou a publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais, participando de antologias e contribuindo com diversas revistas literárias digitais. Desde o princípio, os seus poemas foram muito bem recebidos pelos leitores e pelos periódicos digitais.