Por meio de um Eu lírico intenso, visceral e testemunhal, um jovem do interior de São Paulo, mais especificamente de Tabatinga, uma cidade de aproximadamente 15 mil habitantes, oferece aos leitores uma construção poética que emerge, para ele, como uma inestancável construção de sentido.
Partindo da imagem fundacional e dolorosa do parto, Eliézer nos conta, não de maneira cronológica, seus vários nascimentos, evocando as célebres palavras de Marguerite Yourcenar: “O nosso verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar de inteligência sobre nós próprios”.
Rompendo dolorosas membranas, seus poemas testemunham a percepção, num movimento oscilatório entre consciência/angústia e prazer/descoberta, de situações como a discriminação social, o preconceito racial, a descoberta da sexualidade e, talvez a maior de suas dores, a morte da mãe.
Só por meio da poesia, seria possível lidar com a ruptura da opressora condição religiosa do berço em que nascera, cercado por discursos de culpa e condenação.
Por meio das palavras, o autor degusta a percepção de sua diferença. Por entre versos, livres ou não, o desabafo e a denúncia dos momentos em que, ainda criança, era preterido entre os primos pela cor de sua pele. Entre sinestesias e metáforas, a singularidade subjetiva de sua condição de homem gay, preto e pobre ganha contornos fortes e multicores.
A figura da mãe, único porto indiscutivelmente seguro que conhecia até a maioridade, fora sempre marcada pela combinação paradoxal de uma saúde frágil com uma personalidade forte. De súbito, esse pilar existencial incomparável escorre pelos dedos em decorrência de um câncer, tão imperceptível a princípio quanto rápido no seu fim. Este, o último parto, talvez possa ser visto aqui como uma espécie de parição ao contrário. Entre citações poéticas, paródias, ironias ou outros recursos de intertextualidade, o menino de Tabatinga cresce. Cresce como homem, como escritor, como alguém que pensa o mundo em que vive ou que deve(ria) viver, fazendo de suas palavras, ditas ou escritas, mãos parteiras que seguram outras mãos.
(Carlos Henrique Fonseca, doutor em Estudos Literários)
Eliézer dos Santos nasceu em Tabatinga, interior de São Paulo em 1991. É pedagogo por formação e atua na educação pública na cidade de Araraquara.
Desde criança é encantado com as palavras e os livros, um gosto ensinado e estimulado pela mãe. Durante a adolescência começa a escrever seus primeiros poemas. Na universidade foi premiado em um concurso por uma de suas poesias. Já adaptou para o teatro o texto de Virgínia Woolf, A marca na parede, peça possibilitada através de um edital público. Casado com o professor, bailarino e ator Carlos Henrique Fonseca desde 2011, escreveu poemas para vários espetáculos de dança idealizados pelo marido, tendo um deles sido selecionado para ser apresentado na Itália, em um festival de dança.
Atualmente, Eliézer cursa uma segunda licenciatura em letras e foi aprovado para o programa de mestrado em Educação Sexual da Unesp Araraquara.
08 de dezembro
Era um domingo quente
E o São Paulo vencia o Corinthians
Michael discutia as raças
do jeito que podia
“black or white”?
E Camões premiava o Craveirinha
O Ozzy com sua excentricidade
cantando “Mama, I'm coming home”
Um centauro rasgava o céu
para que as almas que vinham naquele dia pudessem chegar
Três mães dançavam celebrando seu dia
Oxum bela dançava
Iemanjá amorosa dançava
Nossa senhora da Conceição dançava
Bailavam pelas mães que nasciam junto com seus filhos
Célia dançava no hospital
Bailava a dança da vida
Ritual mais antigo que o próprio tempo
Bailava pela vida
Sua e de seu rebento
As três mães deusas aos seu redor
Esse foi meu primeiro parto.
*
Bipolar
Oh, homem de dois corações
como cabe em ti o Sol e a Lua?
das trevas vem teu pranto
da luz teu destino
rasga-se ao meio
e não sabe em qual metade está
É o peso em sensação
ele te esmaga, vil criatura?
Porque teu coração bate
apesar de ter uma metade obscura
e uma de tuas mãos acaricia com a paixão e o amor dos anjos
enquanto a outra estrangula ou arranca tuas próprias vísceras
mártir de ti mesmo, criatura tola
quem o crucifica a não ser sua própria cruz?
Nero, Nero, para que as chamas?
Para que me consumam.
e assim tu vais
porque não encontra paz
nem mesmo as que jogam em teus braços
porque tu as destróis
na ânsia de mantê-las