Não importa a teoria, o fato é que alguém inventou o começo e para isso precisou empurrar o ser para o mundo. Sim, até ela - Eva não foi parida, mas pariu. E todo parto é um talho. Nos separamos da mãe para que possamos existir como indivíduos. Nos constituímos, basicamente, a partir de uma cicatriz. O umbigo nos lembra: nem tudo que nos gerou nos constitui, nem tudo que nos nutriu nos sustenta. Sabrina Dalbelo faz desse côncavo íntimo um lugar para a poesia. Ali cabe tudo: a miragem de uma mãe, sua coragem ou insensatez, o amor, o perdão, a dor, uma linhagem inteira até chegar àquela mulher que nega seus óvulos sob o direito sagrado de trazer para a vida uma outra afirmação. A maternidade desperta sentimentos abundantes e por vezes controversos porque é pura poesia: suspensão e deslocamento. A mãe fera pode ser a mesma mãe que chora no banheiro para não acordar o filho, o sentimento ultrapassa os limites da linguagem. É o vínculo e é o vento e são essas árvores que crescem enroscadas. Sabrina nos lembra que filhos são frutos do amor e da falta e também da loucura. Em alguns de seus versos, sentimos o gosto do leite empedrado no seio de muitas gerações e vemos a mesma boca faminta escancarada num berro de angústia diante do bico rachado. Em outros, podemos sentir a ternura de uma saciedade impossível fora do aconchego materno. A poeta sabe: para cada cesura existe uma palavra que costura. Sim, ficam marcas, mas isso é bom. Cicatrizes formam o mapa que singulariza a nossa existência. No dia zero, existiu uma mãe e esse é o fato mais definitivo da vida, porque todos os outros dias existem ou por causa dela ou apesar dela. Seu nome? Não importa.
Sabrina Dalbelo é poeta gaúcha, autora de “Rasga-ossos” (Penalux, 2020), finalista do Prêmio AGES Livro do Ano e do Prêmio Açorianos de Literatura, em 2021, e de “Ab Cena” (Urutau, 2023). Integrante do Coletivo As Contistas. Foi a Escritora Homenageada da 36ª Feira do Livro de Bento Gonçalves/ RS (2021). Participou de oficinas de escrita com Marcelino Freire e atualmente estuda poesia com Pedro Gonzaga.
mulher no asfalto
colo minha bochecha no asfalto para olhar e sentir a miragem do sol no piche, aquela fumaça tremulante, igual à do fogo, mas que não queima tanto, nem corrói, nem apaga nada, apenas pulsa embaça preenche a memória. nem com a tarde a miragem acaba. vejo tuas pernas ao longe, mãe, andando sempre reto. teus pés descalços me fazem lembrar que tu sempre amaste a terra, gostaste da grama, mas precisaste tomar o caminho da ida, como se precisasses voar. tu vais, eu fico no ninho. meu rosto colado ao asfalto te vendo tão longe, diminuindo, e resta um morno entre nós. tu ocupada com coisas que não entendo, e eu não perco de vista teus pés. tu indo todos os dias asfalto afora, eu quase não distingo tua imagem. o solo se acalma quando tu voltas para casa no fim do dia, mãe. tu e teus pés exaustos.
o nome dela não importa
uma mãe aparece
à porta do poema
para lembrar
leva casaco
qualquer coisa
liga
ao pequeno verso
que sai
de mochila
para a mãe / para a filha
desculpe-me o tropeço. a vigília. a dor. o desespero. a temperatura. a doença. o gasto. o desgosto. a falta. o cheiro. o gesto. o aperto. a ameaça. o abraço. a palavra que eu disse. aquela que calei. desculpe-me o silêncio. e também os gritos. a mensagem. a carta. o doce. a porta fechada. as janelas abertas. o tempero. o atraso. a fronha azul e não branca. o canal de tv. desculpe-me pela hora errada. a viagem. meu beijo melado. quando te virei a cara. desculpe-me por eu não ter aprendido. por não ter entendido. desculpe-me não ter ido. por não ter insistido. eu errei como filha. eu errei como mãe. desculpe-me.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Livro O nome dela não importa
Autora: Sabrina Dalbelo.
46 p.; 13 X 16 cm
ISBN 978-65-6064-075-7
Curitiba: Eu-i, 2024.
1. Poesia. 2. Literatura brasileira.
Bem-vindo à loja oficial da Editora Toma Aí Um Poema (TAUP), um espaço dedicado à celebração da literatura em suas múltiplas formas e vozes. Desde 2020, publicamos e promovemos obras que desafiam o convencional, oferecendo um catálogo diverso que valoriza autores de minorias sociais, incluindo mulheres, pessoas LGBTQIA+, negras, indígenas, neurodivergentes e outras vozes historicamente marginalizadas. Aqui você encontra poesia, ficção, ensaios e publicações que transcendem os limites do tradicional.