escrevo porque só sei mergulhar assim
esse escrito, fragmentário, é deslocamento em ato, da angústia ao fim
eu fiz dele um rebentar das ondas, tão forte quanto susto, tão meu quanto pude
a escrita em minha vida se inicia no momento em que nasci
saí do mar-barriga e ganhei outro espaço pra nadar: o mundo
(minha mãe sempre dizia: a gente cria filha pro mundo)
imersa em língua de mundo, com águas nem sempre claras, num corpo-desamparo, a minha escrita inicia
em pensamento
não
ela é o próprio pensamento
penso em escritos, assim como o sol que nasce todos os dias, certo
quando pequena disse pra mãe-mar: “agora você não precisa mais ler ou escrever pra mim, eu já sei
ser
sozinha”
ler e escrever fazia laço e ela odiava o ato
aprendi pequena que às vezes o laço também dói.
durante longas buscas por caminhos que se fizessem caminháveis, dedilhando os mapas
eu sempre ia e eu sempre vinha, o movimento próprio das águas oceânicas
ambivalência, insustentação (essa palavra existe?)
restos que enroscam nos pés quando mudam as marés
não existe nada mais autêntico que o mar
ele nunca é o mesmo
porque cada vez que a gente entra nele
a água já mudou de lugar
e tudo volta a ser inaugural
nesse caminhar na beirada notei que escrever esses textos era urgente
a gravidade me puxa e eu vou, soltando o corpo
não resisto mais
por que deixar de ir?
esses textos contêm as andanças sob a areia quente
a agonia do atrito, o medo debaixo do braço
a observação dos barcos
a ânsia de chegar
e o espanto em chegar
se você os lê, sou mar-sorriso
Ana Gabardo é psicanalista e pedagoga, mora em Curitiba/PR e escreve desde que se lembra de ser gente. Desde cedo, reconhece o imenso compromisso e afeto com as palavras, que para ela são um modo de sobrevivência e de embelezamento da vida. Ela alimenta cotidianamente seu blog (https://www.sonhosemergentes.com/) com escritos sobre a vida e a morte, sobre os mergulhos e as dores e, às vezes, com um pouco de humor.
22 bicho marinho
meu desejo é bicho marinho
vive profundo
às vezes sai pra tomar sol, às vezes engole embarcações.
meu desejo é bicho marinho que se arranca pedaços pra viver, que constrói novas patas depois de
perdê-las, que engole outros bichos cinco vezes maiores que si mesmo.
meu desejo é bicho marinho, tão maravilhoso e perigoso, tão impactante que suspende tudo, tudo
um balão inflado dentro da barriga
meu desejo é bicho marinho que se divide, que se transforma, que se refaz a cada vez
de novo
às vezes virando tentáculo
de novo
às vezes virando perna
que não tinha
causando espanto e fascínio e sempre uma pergunta
que coisa é essa que está aqui?
Bem-vindo à loja oficial da Editora Toma Aí Um Poema (TAUP), um espaço dedicado à celebração da literatura em suas múltiplas formas e vozes. Desde 2020, publicamos e promovemos obras que desafiam o convencional, oferecendo um catálogo diverso que valoriza autores de minorias sociais, incluindo mulheres, pessoas LGBTQIA+, negras, indígenas, neurodivergentes e outras vozes historicamente marginalizadas. Aqui você encontra poesia, ficção, ensaios e publicações que transcendem os limites do tradicional.